«Ao ler este livro, peço ao leitor que procure deixar de lado todos os seus preconceitos, todas as suas memórias e lembranças, e mesmo todas as suas ideias (pre)concebidas acerca deste caso. Peço-lhe que, quase de uma «forma virgem», receba as informações aqui escritas com o intuito de entender a real intenção deste livro: perceber o que pode acontecer a qualquer um de nós, em qualquer momento, sem aviso prévio.»
«(Esta) obra é um quadro pintado com cores fortes, verdadeiras, sem meias-tintas, onde se lê, em cada pincelada, uma emoção, um sentimento, um manual de valores de um conjunto de personagens vivas, sérias, lutadoras, conscientes, intocáveis pela mentira, incorruptíveis pela propaganda. E isso transforma este livro num exemplo. [...] Este não é um livro de ficção. As personagens são pessoas reais. Exprimem sentimentos reais. Revelam emoções reais. Essa é uma das suas riquezas. E aqui ficam escritas, arquivadas, as palavras, filhas do que é sentido e humano, para uma verdadeira memória futura, que bem necessária será um dia.»
in prefácio de Carlos Cruz
A Casa Pia viu destruída uma imagem enraizada desde 1780. Aqueles que foram considerados suspeitos de pedofilia nunca mais refizeram as suas vidas. As alegadas vítimas procuraram um recomeço, dentro ou fora do país. Mas nenhuma destas pessoas voltou a ser a mesma — e todas elas têm família e amigos que sofreram com o que estava a acontecer.
Marta Cruz reuniu em As Outras Vítimas: Relatos inéditos das vidas atingidas pelo processo Casa Pia, à venda em todo o país a partir de 16 de Novembro (14,39€) - lançamento dia 18, às 18h30, Fnac do C. Colombo, depoimentos do sofrimento vivido, ao longo destes quase nove anos, pelas pessoas ligadas a Carlos Cruz, um dos principais arguidos do processo Casa Pia, pelo simples facto de fazerem parte da sua vida e de nunca terem deixado de acreditar na sua inocência. Marluce, Raquel Rocheta, Martim Louro, Maria João Filaho Gouveia, entre outros, deixam neste livro o seu testemunho destes conturbados anos.
«(...) Eu sou a Marta. Fui eu que escrevi o meu depoimento. Não foi fácil. Publico aqui alguns momentos meus que nunca foram partilhados, nem sequer com os meus pais. Relembrar não foi simples, mas foi uma forma de ajudar a cicatrizar a ferida. Passados oito anos e alguns meses de processo, é a primeira vez que exteriorizo estes sentimentos, estes pensamentos e estas emoções. Espero que sejam compreendidos. (...) Não me lembro da data exacta em que isto se passou, mas certo dia, antes de ser preso, o meu pai chamou-me a sua casa para conversarmos. Não percebi o porquê daquele encontro, já que tínhamos passado o fim-de-semana juntos e não era normal ele querer conversar pessoalmente comigo durante a semana.
Mais estranho ainda foi saber que ele também queria falar com o meu irmão. Não me recordo claramente de quem se encontrava em casa do meu pai, mas tenho uma imagem nítida na minha mente: a de ver o meu pai sentado no sofá da sala, pedir-me para me sentar e ouvi-lo com atenção. Assim fiz: sentei-me e calei-me.
O seu olhar e a sua voz não condiziam de todo com o que estava habituada a ver e a ouvir.
Pressenti que dali «vinha bomba» e lembro-me bem de começar a suar das mãos e de sentir o coração começar a bater com mais força. Também não me lembro das palavras concretas que usou, mas disse-nos que algo de grave estava a acontecer e que o seu nome estava envolvido num escândalo. Não percebi à primeira e pedi que me explicasse melhor. Ele contou que alguém tinha dito que, alguns anos antes,ele tinha abusado sexualmente de algumas crianças e que isso era totalmente mentira. Disse que ia defender-se e que ficássemos calmos porque tudo iria ser resolvido. Esta conversa fez com que, por instantes, o meu mundo desabasse. Não abri a boca, subi a correr para o meu quarto (o quarto que eu tinha em casa dele) e comecei a chorar sem parar. Não conseguia falar, nem sequer pensar claramente. O meu irmão subiu atrás de mim e tentou conversar comigo, mas eu não conseguia entender nada. Nada fazia sentido para mim.»
Marta Cruz
Em As Outras Vítimas: relatos inéditos das vidas atingidas pelo processo Casa Pia pode ainda ler-se a declaração final de Carlos Cruz, nunca antes publicada, feita em sua defesa, proferida por ele próprio, frente aos juízes que o condenaram.